domingo, 23 de novembro de 2008

Caixinhas Chinesas

Uma Gota do meu Sonho, de Shahla RosaSerá o sonho desvanecido ou a realidade esfumada o mais imaterial? Preconceito puro que quer ver a tangibilidade que parecia ao alcance e se nos escapou entre os dedos como o critério de realidade, esquecendo que a intensidade não lhe está forçosamente vinculada, mas à capacidade de aproveitamento que uma memória ou permanência onírica nos deixem. Breton e os seus fizeram da eliminação dos policiamentos da vigília o critério de aprovação e consagração do Homem. Esquecendo que o sonhado e o vivido não andam tão longe um do outro como isso, salvo na satisfação da vaidade. Os salvados que Coleridge conseguiu reunir no «Kublai Kahn» estão tão próximos dos fragmentos que nos ficam do que experimentámos, como as conjugações, verbais e outras, os fazem intermináveis portas para sucessivas divisões vazias, de que, afinal, se retira a grande ilação - a de os compartimentos que se seguem uns aos outros, condicionados por elas, não dizerem tanto respeito ao que pensámos dormindo, mas muito mais ao Desejo do nosso todo.
O Mundo está cheio de descobertas já anteriormente feitas. Aprisioná-las em linguagens e dogmas de escola é a ilusão que nos damos do Novo.
De Manuel Bandeira:

TEMA E VARIAÇÕES

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.

Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
O de ter sonhado

Que estava sonhando.

Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com Você.
Estar? Ter estado.
Que é tempo passado.

Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.



15 comentários:

cristina ribeiro disse...

Compartimentos nada estanques.

Beijo, Paulo.

Anónimo disse...

Estou aqui às voltas com o meu neurónio, indeciso entre o que mais aprecio: se a sua brilhante análise se as palavras de Bandeira.

Fico-me por um empate "técnico" :-)

Abraço.

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Cristina,
e a maior pena é querer-lhes garantir ou impermeablidade recíproca, ou supremacia sobre o outro.

Meu Caro Mialgia,
ai, o técnico! Mas o "empate" merece. Quer por fazer perder precioso tempo, quer por, saído da generosa amizade que faz o favor de me dedicar, sugerir que eu poderia não desmerecer Bandeira. Mas é bem doce essa irrealidade. Grato, portanto.
Beijo e abraço

ana v. disse...

Concordo com o Mialgia: medalha de ouro ex-aequo. E este empate é um grande elogio, tanto para ti como para o Bandeira!
Beijinho :-)

PS: Já imaginaste realidade mais empobrecida do que a dos que não sonham, ou não se lembram dos sonhos que tiveram?

Paulo Cunha Porto disse...

Tremendo, Querida Ana. Já me deixou seduzido mas angustiado a leitura de «L´Incertitude Qui Vient des Rêves», de Roger Caillois...
E o Sonho, ali, não incidia sobre este, muito mais marcante e atreito a conexões com cicatrizes.

Pobre Bandeira, depreciado na proporção do meu orgulho deleitado!
Beijinho

Anónimo disse...

Meu Caro Paulo,

Quem comigo priva conhece bem os meus inúmeros defeitos e algumas, muito poucas, qualidades. Se há característica de que me posso orgulhar é de não ser manteigueiro. E não foram poucas as vezes que, profissionalmente, isso me trouxe prejuízos.

Abraço.

Paulo Cunha Porto disse...

Eu falava lá disso, Caríssimo Mialgia!
Apenas da boa vontade que o afecto gera.
Grande abraço

Marie Tourvel disse...

Falando em sonhos...
Clarice Lispector pra você, meu querido:

"Sou como você me vê.
Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar."

Um grande beijo e um ótimo domingo.

Gi disse...

Por cá, como o tema é sempre o mesmo e as variações, idem, sonhar revela-se um verdadeiro pesadelo, pois confunde-se/nos com a realidade.

Maria de Fátima Filipe disse...

Querido Paulo, falta-me o talento para comentar tão sensível post, que se funde magistralmente no poema de Manuel Bandeira e no surrealismo de Shahala Rosa.

Beijinho

Maria de Fátima Filipe disse...

Querido Paulo, falta-me o talento para comentar tão sensível post, que se funde magistralmente no poema de Manuel Bandeira e no surrealismo de Shahala Rosa.

Beijinho

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

o sonho é um tema que adora na literatura, não é por acaso o titulo do meu blogue :-)



.......para mim Bandeira é um dos melhores, senão o melhor poeta brasileiro.

beijinho

Mike disse...

Nem em sonhos escreveria como escreveste, caro Paulo. Para mim nunca há empate quando a prosa se confronta com a poesia.
Abraço.

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Marie,
e uma boa semana para a Menina.
Belos versos da Clarice, sendo que o problema maior deste sonho parece-me, justamente, ser... visto passar!

Querida Gi,
é o Presente e presente que nos dão, a mera capacidade de sonhar, que amoleceu o carácter nacional, dizem. Mas o gato a quem privaram experimentalmente dos períodos de sono em que sonhava também ficou à beira da loucura...

Querida Ariel,
gratíssimo, mas mais não foi do que tentativa de não dar a seco, sem toquezinho meu, o produto dessas genialidades incomparáveis.

Querida Júlia,
não será a Literatura, para o Leitor, uma espécie de somho, no sentido de uma oferta ilimitada de transposições espirituais cujo fio a própria racionalidade é impotente para controlar? E quando preenche o sentido do Desejo, com a consecução formal de aspirações significantes e estéticas, upa, upa!

Bandeira era fabuloso!

Meu Caro Mike,
referes-Te aos pesadelos, claro.
Mas a Poesia está onde, por vezes, não é detectada, camuflada por traje que n~~ao parece o respectivo uniforme...
Beijinhos e abraços

Anónimo disse...

Vivemos uma vida, sonhamos com outra, mas a verdadeira é a que sonhamos.

"A Fé Difícil"
Jean Guéhenno


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