quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Ó Vã Cobiça!

Livros Antigos e Tesoura, de Christopher Stott

Muito gentil e oportunamente chamou-me a Patti a atenção para certa notícia. Qualquer amador de livros fica contristado, mas, para além disso, logo me interessou saber as motivações deste estranho personagem. O ar não é susceptível de tranquilizar quem quer que seja, mas exige-se de quem escreve um pouco mais do que imputar actos criminosos das pessoas às aparências respectivas.
A princípo, confesso o preconceito, ao constatar a origem iraniana do indivíduo, pensei que fosse uma espécie de terrorismo cultural, até porque os specimens mais atingidos pelos recortes assassinos eram obras que falavam da expansão Ocidental em terras hoje islamizadas.
Graças à net pude investigar um pouco mais e desenganar-me: pelos vistos, tratava-se apenas de uma patologia mental de coleccionador compulsivo. Por que será que não me admiro por aí além? Tenho, desde há muito, a noção de que quem se dedica ao coleccionismo está a um pequeno passo do crime. Eu próprio já me surpreendi a dizer a "concorrentes" que o livreiro tal nada tinha de interessante em certo dia, quando estava a abarrotar de volumes apetecíveis. E noutros vi coisa pior, até o furto.
Roubalheira não encontro neste caso, apesar de poder parecê-lo. Suspeito muito mais de um despeito dos mais desequilibrados, que, não podendo possuir exemplares únicos, mutila os que existem, para que mais ninguém os tenha. E que guarda as páginas amputadas como troféus dos seus êxitos malignos na senda da destruição.

No Dia da Pessoa com Deficiência outros farão melhor do que eu a exaltação da necessidade de comportamentos dignos para com os que foram atingidos por essas limitadoras infelicidades. Mas talvez não seja de todo descabido ver no Livro um símbolo do Homem. E nestes, irremediavelmente aleijados, um paradigma dos estropiamentos que resultam da maldade humana.

12 comentários:

CPrice disse...

"os livros, sendo o mesmo para todos, uns percebem dele muito, outro pouco, outros nada" :) .. Pe. A.Vieira :) .. e neste magnífico texto Caro Paulo nem cabe a noção de "levar recuerdo" pois não?

Pedro Barbosa Pinto disse...

Excepção para livro de cheques que resulta da necessidade humana de destrocar :-)

Anónimo disse...

Parece-me o típico Caso do Psicopata da Biblioteca. Se não posso ter-te não serás de mais ninguém.

Sinceramente, acho que temos uma relação demasiado subserviente com os livros. Achamo-los intocáveis. Provavelmente, porque não lemos todos os que temos.

A minha relação com eles é diferente. São relativamente poucos aqueles livros que li e conservo. Embora saiba que a probabilidade de os reler será ínfima. Gosto de pensar que espalho o Bem da Cultura. Já fiz doacções a bibliotecas, Amigos e colegas. Sem esquecer hoteis,a eroportos e aviões.

Abraço.

cristina ribeiro disse...

Há tempos li n'« O Jansenista » uma série de posts a tal relativos, de deitar as mãos à cabeça.
É um problema nas Bibliotecas Públicas...

ana v. disse...

Pela tua teoria, todas as mulheres estão a um passo do crime... para nós, abrir um armário cheio de roupa e dizer "Não tenho nada para vestir" é absolutamente natural. Mas talvez estejamos sempre a um passo do crime, sim... nada de mais humano que esse abismo diário!

Mialgia, a sua atitude em relação aos livros é notável! Aplaudo-o com admiração, e gostava de ser capaz de me livrar deles com esse despojamento, mas não consigo...

Anónimo disse...

Como diz a Cristina, as nossas bibliotecas são alvo de inúmeros actos de vandalismo idêntico.
Também fui coleccionador, quando era jovem, mas passou-me a mania, quando comecei a temer tornar-me cleptómano...

fugidia disse...

A notícia deixou-me um calafrio na espinha.
Não acho os livros intocáveis; gosto de os manusear, de os glosar, de os sublinhar, tanto mais quanto mais importantes os sinto.
É uma relação táctil, de afecto. São meus amigos.
Talvez por isso veja a atitude deste senhor como um acto de mutilar. Magoar. Aparentemente sem razão.

Gostei de o ler, Paulo.
Beijinho.

LADY-BIRD, ANTITABÁGIKA, FÃ DO JOMI LOL E JÁ AGORA DOS NOSSOS AMIGOS ANTI-TECNOLOGIAS: MARCHANTE (se não existissem tinham que ser inventados) disse...

Oh Paulo, e há quem tenha vontade dos queimar, por já não os poder ver mais à frente...

Na minha Faculdade também arrancam páginas aos livros e escondem os livros noutras secções para ninguém ter acesso...enfim...
Quanto aos coleccionadores, porque não coleccionar Cromos? lol garanto que não roubam nem rasgam nada a ninguém...
Há com cada cromo...eles são brilhates, eles são especiais...lol
lol beijinho

Maria de Fátima Filipe disse...

Querido Paulo, o paralelismo que faz tem todo o sentido. Por mim condenava o homem a trabalhos forçados...

beijinho

Patti disse...

Pois olhe que fiquei abismada, não só com o pormenor do bisturi, com o tempo (sete anos) que ele já andava nestas mutilações.

E será que as obras não terão restauro?

Gi disse...

É o que se chama, literalmente, um rato de biblioteca.
Será que com as páginas cirurgicamente cortadas se poderá editar um livro?
Seria um best-selles, por certo!

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Once,
é a vantagem do copy paste sobre os recortes assassinos... O problema é que, disciplinando-nos com Vieira, este sujeito parecia perceber do que falava. É como aqueles apaixonados que matam o objecto do seu amor, para que não venha a ser de outro.

Meu Caro Pedro Barbosa Pinto,
cheque-mate, embora seja um iludido aquele que pensa poder conservar algo do que contém tal página arrancada...

Ai, Meu Caro Mialgia,
tenho de seguir o Meu Amigo, nas suas viagens e estadias! Eu leio-os, releio-os, conservo-os, gosto de olhar para eles, faço-lhes festinhas, falo com eles, enfim, um psicopata a quem não dá para o mal...
E, amigo dos animais que sou, mato traças com fúria e prazer sádico. Imagine o que me apetece fazer a essa tamanho-gigante!

Recordo-me bem, Querida Cristina, por isso, os exemplares mais preciosos devem ser microfilmados e tornados acessíveis nesse suporte. É horrenda a ideia de um livro guardado que não serve para ser lido, mas trata-se da diferençã entre um truinfo relativo e outro, absoluto do Mal.

Com a diferença, Querida Ana, que as boas roupas passam de moda a cada seis meses e is bons livros permanecem a uso por séculos!

Ehehehehehe, Meu Caro Carlos, ainda tenho conseguido resistir a isso, mas, realmente, a tentação é enorme.

Querida Lady Bird,
isso é que é levar a concorrência por uma notita às últimas consequências. Prometem, esses!

Querida Ariel,
com um vigilante bem mauzinho, que lhe arrancasse à chicotada pedaços de pele, já que é o tratamento que ele gosta de infligir aos alfarrábios...

Alguma, Querida Patti, mas o sacripanta esconreu bem muitas das extracções. Só não digo que é um caso clínico porque isso poderia facilitar uma suavização do castigo.

Querida Gi,
Bem, agora deu-me uma ideia: escrever um romance em que uma ratazana inspirada nesta fizesse outro tanto, mas os recortes colados uns após os outros, fizessem sentido autónomo e uma obra notável. Seria a redenção possível, um mero caso de os fins justificarem, para o infractor, os meios.
Beijinhos e abraços